Descobrir que o seu pai ou mãe era narcisista e que muitas das coisas pelas quais você passou na infância era abuso não deixa de ser um grande choque. Ou pode ser que você descubra que está ou esteve num relacionamento com uma pessoa narcisista. Você acha que finalmente tudo faz sentido mas isto é simplesmente a primeira etapa do seu acordar. Continue lendo…
…e eu mostro a você quão fundo a toca do coelho vai.
— Morpheus (Matrix 1999)
A ilusão da realidade em que acreditava
Durante anos você quiz acreditar que teve uma infância “normal” apesar de algumas coisas que fizeram sofrer. Você acreditou que foi amado apesar de não ter sentido isso. Você foi sujeito a um controlo apertado do que podia fazer, dizer ou ser mas achava que era para seu próprio bem. E a justificação pelos castigos a que foi sujeito era por culpa sua. Era isto que lhe tinham dito e no qual você acreditava mas sem nunca ter realmente pensado no assunto em profundidade.
“Para quê pensar no meu passado? O que tem isso a haver com o meu presente? O que sou agora não tem nada a haver com a criança que eu era.”
— Anónimo
Então quem é responsável pela criação da realidade em que você acredita viver? Quem foi que criou as narrativas, histórias sobre o que aconteceu na sua família? Ou no relacionamento? Sobre como você era ou é? Para quem cresceu numa família narcisista obviamente foi o pai ou mãe narcisista. No relacionamento com uma pessoa narcisista foi obviamente essa pessoa. Você limitou-se a acreditar nessa realidade que lhe foi construída, sem a criticar ou por em causa. Até agora!
O penso rápido da negação
Uma das formas de manter o condicionamento da realidade a que a pessoa foi sujeita é o próprio não pensar no assunto, tentar esquecer (como se fosse possível), apagar da sua memória esses momentos tristes.
É isto que a maior parte das pessoas faz durante muito tempo. É um esforço enorme tentar manter a imagem que estava tudo bem lá em casa, que nada de anormal se passou, que era uma família exemplar ou que o relacionamento era perfeitamente normal, talvez mesmo acima da média, excepcional.
“Como vai você?” e a maioria das pessoas responde automaticamente…
“Tudo bem.” apesar do desespero em que vive.
A negação pode e tem um modo de aturar inconsciente, que passa pela repetição, e que passa a ser o nosso modo de responder automaticamente a muitas situações. Criamos esta ficção da história que vivemos porque é conveniente cómoda e não nos obriga a pensar nem a tomar consciência.
Diga-se a favor da negação que este mecanismo psicológico tem por objetivo proteger o Ego de sofrimento adicional através de nos manter ignorantes sobre nós próprios e assim não sofrer.
A ignorância é uma benção
— Thomas Gray
Portanto, há a tendência de continuar a repetir a negação que nos é conveniente para evitar o sofrimento à custa da nossa ignorância sobre nós próprios. Mas no fundo a negação não passa de um penso rápido (pensar rapidamente) sobre o assunto em questão, sem profundidade e que serve de tampão para não nos vermos e não vermos o que nos foi feito nem o sofrimento que daí resultou.
Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade
― Joseph Goebbels
Como todos os pensos rápidos são coisas de duração limitada e chega o dia em que o penso cai e aí temos de nos confrontar com a realidade que estava subjacente e que a todo o custo tínhamos tentado esquivar de ver.
Porque levei tanto tempo para ver isto?
Esta é uma pergunta que a maioria das pessoas faz a si própria. Pacientes meus colocam esta pergunta com uma ponta de auto-remorso pelo tempo que passaram a se auto-iludir sobre uma realidade que lhes causava dano.
Foi também esta pergunta levou o psicólogo Leo Festinger a estudar o fato de as pessoas procurarem coerência interna entre aquilo em que acreditam e factos ou realidades que contradizem as suas crenças. Assim, quando há discordância entre o que a pessoa acredita e os factos ou realidades, a pessoa tende a criar racionalizações que justifiquem a sua crença, atitudes ou comportamentos. Por exemplo: “O meu pai batia-me porque eu era uma criança traquina.” Deste modo a pessoa que diz isto diminuí tomada de consciência que foi abusado, justifica o comportamento de abuso, e o pai é ilibado de maus tratos e, de certo modo, isto não vai afetar a relação que existiu ou existe entre os dois.
A este modo de defesa inconsciente das nossas crenças psicológicas, Leo Festinger, deu o nome de Dissonância Cognitiva.
Contudo, não fique a pensar que a Dissonância Cognitiva é só um processo psicológico inconsciente, longe disso. Quando uma pessoa é confrontada, seja por ela própria ou por terceiros, com algo que contradiz aquilo em que acredita, produz-se também uma reação física. A pessoa sente mau estar, desconforto e ansiedade, como se fosse um ataque pessoal. E no fundo é, pois aquilo em que acreditamos faz parte de nós, do nosso Eu. A maior parte das pessoas vive identificada com os seus conteúdos de consciência que nesta caso são as suas crenças e, assim elas são aquilo em que acreditam.
Você é aquilo em que acredita.
— Jaime Machado
A pessoa nesta situação de confronto interno só concebe duas saídas para eliminar a dissonância e reduzir a sua ansiedade:
- os factos e realidades são ignoradas ou justificadas,
- a pessoa tem de mudar a sua maneira de ser, isto é a sua crença
Mudar a sua maneira de ser ou naquilo em que acredita dá mais trabalho e exige suportar mais desconforto, o que vai levar a que a maioria das pessoas optem por justificar os factos ou realidades discordantes.
Tempo de acordar
Não há ilusão que dure sempre nem justificação que seja eterna e, mais cedo ou mais tarde algo cede, especialmente quando a pessoa passa por experiências ou situações de crise. São nestes momentos que as crenças e realidades em que acreditava são postas em causa e os seus alicerces testados ao máximo.
O que você sabe você não pode explicar, mas você sente. Você sentiu isso durante toda a sua vida, que há algo errado… Você não sabe o que é, mas está lá, como uma farpa na sua mente, deixando você louco.
— Morpheus Matrix (1999)
É com sofrimento que vemos as velhas estruturas de crenças à volta das quais construímos as nossas vidas ruírem, deixando uma sensação de insegurança do novo que está para vir. Por outro lado, há uma possibilidade de renovação que está no horizonte, novas ideias, novas possibilidades que podem rejuvenescer o nosso ser para crescer maior para um futuro mais largo, mais livre.
O despertar do abuso narcisista é um trabalho de demolição das nossas crenças internas que nos aprisionavam.
— Jaime Machado
As 5 fases do acordar
As cinco fases do acordar são de certo modo semelhantes aos 5 Estágios da Morte do modelo criado por Elisabeth Kübler-Ross.
Se você está a acordar do abuso narcisista, você vai pelas seguintes fases: Negação, Raiva, Negociação, Depressão e Aceitação.
O objetivo é dar a conhecer as cinco fases que irá passar, e ter um melhor conhecimento dos processos e desafios de cada uma das fases. Isto vai ajudar a passar por cada uma das fases com mais consciência e menos turbulência emocional. Vamos mergulhar nas 5 etapas e conhecê-las mais detalhadamente.
Negação
A primeira fase que a pessoa passa é pela fase de negação. Vimos acima que a pessoa começa a responder com uma atitude de negação quando confrontada com novas informações que põe em causa a sua actual realidade, o modo como percepciona o que acontece e as crenças que estão por base.
A negação que estamos a falar aqui é um processo psicológico chamado de mecanismo de defesa pela corrente de psicologia analítica ou chamado de distorção cognitiva pela corrente da psicologia cognitiva. Apesar das definições serem um pouco diferentes o resultado final é o mesmo: a negação da realidade ou informações que a põem em causa. Vimos também acima como a negação faz parte do processo de Dissonância Cognitiva que visa manter as crenças base que suportam a actual realidade em que acreditamos.
Nesta fase a pessoa tenta por todos os meios agarrar-se à antiga realidade que começa a ruir pois é psicologicamente mais fácil de “digerir” do que aceitar e acomodar às novas informações com as quais é confrontada.
Nesta fase, é muito comum a pessoa ter reações ou opiniões que reafirmam a opinião ou “narrativa oficial” criada pela pessoa narcisista. Todas as informações que lhe são apresentadas e que vão contra a “narrativa oficial” e suas crenças presentes são rotuladas como “malucas”, amorais ou simplesmente teorias da conspiração.
O ponto chave da negação nesta fase é que ninguém gosta de admitir que está errado, muito menos admitir que foi enganado. É por isso que é infinitamente mais fácil negar as novas informações do que aceitá-las.
Raiva
A negação só funciona até um certo ponto. Quando deixa de funcionar a pessoa começa a sentir raiva pois percebe que a realidade anterior em que acreditava era uma mentira criada pela pessoa narcisista para a usar e manipular. A teia de mentiras, falsidades, abusos e manipulações cruéis tornam-se claramente visíveis. A “narrativa oficial” do narcisista passa a ser vista como um conjunto de mentiras que servem somente os propósitos egocêntricos do narcisista. A pessoa começa finalmente a tomar consciência do abuso e manipulação a que foi sujeita e a apontar culpas ao narcisista.
É aqui que a pessoa começa a ver para além da “narrativa oficial” do narcisista, para além das mentiras e manipulação. É muito comum surgir o desejo de desmascarar a pessoa narcisista aos olhos dos outros. Surge a vontade de ter de comunicar aos outros esta nova realidade e o quão tóxico é o narcisista. Só que isto em geral leva a mais frustração e raiva pois a maioria das outras pessoa não estão prontas a abdicar da imagem positiva que têm da pessoa narcisista. Estas pessoas não vão acreditar, não vão levar isto a sério.
Perguntas de pessoas que passam por essa fase podem ser: “Por que eu? Não é justo!”; “Como isso pode acontecer comigo?”; “Quem é o culpado?”; “Por que isso aconteceu?”.
A raiva é uma reação perfeitamente normal de defesa que sentimos quando os nossos limites pessoais não estão a ser respeitados e o abuso está presente. No entanto, aqui a raiva é em relação à descoberta do passado de abuso e manipulação que ocorreu e do qual a pessoa não estava consciente. A raiva não só é dirigida à pessoa narcisista mas também para a própria pessoa, por ter acreditado nessa realidade ilusória do narcisista e ter-se deixado abusar e manipular por ela.
A par da raiva muitas pessoas também sentem outro sentimento: a culpa. Elas culpam-se por sentirem raiva, pois até aqui tinham sido condicionadas a nunca sentirem descontentamento em relação às ações do narcisista (muitas vezes os narcisistas fazem-se de vitimas para a outra pessoa sentir culpa e assim melhor a manipular). Muitas destas pessoas lidam mal com isto, não sabem o que fazer com a raiva. É uma coisa nova para elas com a qual não estavam habituadas a lidar e muito menos a permitir-se exprimir.
Algumas acham que a raiva não é natural, reprimem-se, criam juízos de valor negativos sobre si próprias do tipo “Eu sou boa pessoa, como posso sentir isto?”. Acontece que a raiva é uma emoção natural, é o nosso sistema de alarme contra abuso e manipulação que tinha sido desativado pelo narcisista e que agora volta a começar a funcionar. Depois há que diferenciar entre raiva e agressão, que são duas coisas bem diferentes. A raiva é uma emoção genuína que faz parte do ser humano. A agressão é uma decisão de causar dano a outrem. A pessoa pode permitir-se sentir raiva sem que haja agressão.
Apesar da raiva ajudar à pessoa a finalmente sair da ilusão em que estava, tem um lado negativo: leva a um enorme dispêndio de energia. Nesta fase a pessoa oscila entre o ataque da anterior realidade e a defesa da nova, ora isto é um esforço considerável que desgasta muito. Isto leva a que a pessoa gaste muita energia e fique exausta e cansada.
Uma estratégia eficiente neste fase é redirecionar toda a energia da raiva para a pesquisa factual do assunto, saber mais, procurar grupos de apoio e procurar apoio de um psicoterapeuta competente e especializado em casos de narcisismo. Mais pessoas estão começando a adotar essa linha de ação (e manter sua sanidade).
Mudamos quando a dor de permanecer é maior do que a dor de mudar. As consequências do que vivemos dão a dor que nos motiva a mudar.
— Henry Cloud
Negociação
A pessoa chega a um certo ponto e verifica que apesar da raiva ter ajudado a sair de onde estava, a mudar, a ter uma nova perspetiva da realidade, não foi muito eficaz a confrontar o narcisista, nem a levar o narcisista a assumir responsabilidade ou culpa pelo que fez e, muito menos, a convencer outras pessoas do quão tóxico o narcisista é. Depois, a raiva consome muita energia e deixa a pessoa esgotada. É aqui que a pessoa começa a entrar na fase de negociação.
Nesta fase a pessoa tenta salvar o que pode, tenta conciliar ambas as realidades, tenta trazer o narcisista à razão. Tenta mostrar ao narcisista a sua nova realidade e procurar justificação. Tenta também salvar o que pode do resto do relacionamento que está severamente afectado; há a procura de um novo equilíbrio. Tudo isto na esperança de que mais sofrimento possa ser evitado e uma certa harmonia encontrada.
A pessoa vai rapidamente concluir que tentar negociar com o narcisista não funciona pois ele não está interessado em clarificar o que se passou, a chegar a um acordo ou a assumir qualquer tipo de responsabilidade. Tentar negociar com o narcisista é chegar a mais confusão, humilhação, drama e dor.
Apesar de a pessoa estar segura da sua nova realidade começa a não ter força para continuar pois acha que tentou tudo o que estava ao seu alcance para mudar a situação, fazer ver ao narcisista a sua perspective e também mudar o relacionamento com ele. A desilusão aumenta e a frustração começa a tomar lugar pois a pessoa acha que esgotou todas as suas possibilidades de atuação e pensa que afinal não conseguiu nada.
Este fase é mesmo o último recurso para a velha realidade, para o antigo relacionamento e as crenças que suportam isso. Isto dá lugar à “morte” da velha realidade e relacionamento em que viveu, como das crenças em que acreditava para que tudo isso funcionasse. A pessoa já não tem energia para tentar salvar o que está para trás, sente-se esgotada e, seguidamente dá-se a fase da depressão.
Depressão
É na fase da depressão que você percebe que a sua velha realidade era uma ilusão e que vocês estava completamente enganada. Essa realidade anterior era falsa e tóxica. O chegar a esta tomada de consciência tira energia para agir, há tendência para introspecção, repensar o que funcionou e não. A pessoa sente-se deprimida, esgotada e tem a sensação de que foi traída por si própria (por ter acreditado naquilo tudo).
O desespero porque está a passar leva a pensamentos de desânimo e desalento, do tipo: “Estou tão triste, para quê preocupar com o que quer que seja?”; “Aquela pessoa nunca me amou, então qual é o sentido de tudo disto?”; “Eu não posso continuar, porquê continuar assim?”
Com a morte dessa realidade, do relacionamento e das coisas em que acreditava, foi-se também a energia e a motivação que estava ligada a essa realidade. Há tendência para querer ficar em silêncio, retrair-se, deixar-se estar triste e taciturna.
Esta fase parece não ser relevante mas é super importante para uma nova reorganização interna, queimar qualquer idealização anterior, ficar de novo com os pés bem assentes na terra, reagrupar e acumular nova energia interior para finalmente aceitar a sua nova realidade e construção dos seus novos valores (as novas crenças que vão direcionar a sua nova vida).
Aceitação
Nesta fase a pessoa olha à sua volta e permite-se ver o que realmente está na sua frente. Aceita que o narcisista nunca vai mudar; que o narcisista nunca a amou nem vai amar; que nunca vai obter responsabilização por parte do narcisista pelo sofrimento que ela passou. Mas a par de tudo isto começa também a aceitar-se a si própria, que tem direito de se amar, de se tratar bem, de ser quem é.
Com a aceitação vem o ser capaz de se sentir confortável com a sua nova realidade, de aceitar criar os seus limites e valores pessoais, de estabelecer as suas novas metas que vão orientar a sua nova vida.
É também nesta fase que surge compaixão própria pelo caminho trilhado, pela coragem que tivemos de seguir em frente, por tudo o que fizemos e pela transformação que passamos. Isto também é o início da reconstrução do amor perdido por nós próprios, aquilo que muitos chamam de auto-estima e amor próprio.
Começam a ocorrer pensamento do tipo: “Vai ficar tudo bem.”; “Não posso lutar contra isto que aconteceu mas posso muito bem me preparar para isto.”; “Tenho é de pensar no que está à frente e ir em frente.” É aí que outras pessoas começam a notar algo muito diferente. Ela já não é a mesma pessoa de antes. Começa a haver uma nova luz nos olhos e a confiança em reconstruir toma lugar.
Com a aceitação, tanto dentro como fora, ocorre uma nova integração ao nível do nosso Eu Profundo, do modo como nos relacionamos connosco e a sensação de alguma paz interior, como também de finalmente ser capaz de receber e dar amor de modo equilibrado.
Pensamentos finais
É bom ter em mente que a passagem por estas fases não é linear. Muitas vezes a pessoa vai para a fase seguinte e depois volta para anterior e por assim adiante. Isto é mesmo assim, não caia no engodo de apressar ou saltar fases. A coisa não funciona assim, há que dar tempo ao tempo para que as nossas mudanças interiores sejam bem enraizadas na realidade e não num desejo idealizado de resolver abruptamente ou evitar a dor da viagem que está à nossa frente.
Por último, é útil ter apoio nesta viagem tumultuosa. Procure o apoio de um bom psicoterapeuta competente e com experiência no abuso narcisista para que possa ajudar neste processo.
Esta viagem não é fácil mas vale apena!
E você? Em qual das fases você se encontra? Deixe sua resposta abaixo.
Bibliografia
Cooper, J. (2007). Cognitive dissonance: 50 years of a classic theory. London: Sage Publications.
Festinger, L. (1957) A theory of cognitive dissonance. Stanford, CA: Stanford University Press.
Kubler-Ross, E. (2005) On Grief and Grieving: Finding the Meaning of Grief Through the Five Stages of Loss. London: Scribner Publications.
André Luiz de Carvalho Dias diz
Dr. Jaime, bom dia! Essas fases que o Sr. cita não são, realmente, as fases do LUTO de autoria de Elizabeth Kubler-Ross?
Dr. Jaime Machado diz
Boa tarde André, quando li a Elizabeth Kubler-Ross percebi também a ligação que havia entre a “morte” do nosso eu que ainda não tinha consciência para a emegência do novo eu que já cresceu e tem uma nova consciência do que se passou, assim como uma perspectiva de futuro. É a “red pill” da Matrix 🙂